domingo, 29 de dezembro de 2013

Críticas Morais, O Inefável E A Ideia de Deus

A maior parte dos religiosos possui o hábito de dizer que deus não está sujeito às nossas críticas morais e que as críticas morais ateístas, portanto, não possuem nenhuma relevância. Quando eu digo, por exemplo, sobre o absurdo de um deus homofóbico, de um pai que manda matar o seu próprio filho para salvar a humanidade de si mesmo ou que não está nenhum pouco interessado pela causa animal, estes religiosos, especialmente os adeptos de uma teologia apofática, aqueles que gostam de usar termos como “inefável” e “mistério”, dizem que isso está muito além da compreensão humana. Um dos problemas, entretanto, é que os religiosos fazem exatamente a mesma coisa quando se referem a outras religiões e a outras teologias. Quando um arminiano critica um calvinista, quando um católico critica um protestante, quando um conservador critica um liberal, quando alguém condena a teologia da prosperidade e as religiões pagãs, as pessoas estão fazendo críticas morais à ideia de deus de outros grupos. Dificilmente um religioso aceitaria a prática do estupro pela comunidade religiosa, mesmo que esta afirme fazer isso com a orientação divina. Qual crente concorda com o atentado ocorrido no dia 11 de setembro só porque ele foi feito em nome de Deus? A crítica moral é, portanto, válida quando se refere a uma pretensa divindade e pode ser feita tanto por religiosos quanto por ateus. É perfeitamente compreensível que eu não aprove um Deus que condene a homossexualidade, assim como é perfeitamente compreensível que elas não aprovem um Deus que goste de histeria pentecostal e que, concernente à sexo, só seja favorável à pedofilia.

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quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

Por Do Sol

Todo fim de tarde
Quando o sol não mais arde
Correm nuas pela praia
Na mais discreta gandaia
E com seus cabelos ao vento
Nem percebem meus olhos atentos.

É tão fácil amá-las quando elas correm de mãos dadas
E hipnotizam-me as pupilas quando tiram as sandálias
Mas só dura um minuto e não mais era como antes
Pois logo entram na água e o mar as esconde.

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A Revolução Dos Bichos

Eu poderia não ter  nascido humano. Por outro lado, a minha capacidade de sofrer independe de minha humanidade e a alegação de que só posso ser eu mesmo enquanto humano não parece-me uma verdade analítica, mas algo totalmente acidental. Se meu valor, entretanto, consiste simplesmente em ser humano, estamos a agir da forma mais arbitrária possível, pois acabo por reduzir a nossa moral à sorte de ter nascido humano ou ao azar de não não ter nascido humano. Embora a moral seja por natureza arbitrária, temos que reconhecer que há um limite para toda esta arbitrariedade.

Acho uma completa babaquice negar que os animais não-humanos que moram comigo não sejam membros da minha família ou que toda ideia de família se limita ao espaço físico.

Os crentes estão mais interessados em destruir o incesto do que o ódio entre irmãos e o desamor e a violência entre pais e filhos.

Quando uma pessoa diz que Jesus ensinou a "dar a outra face, mas pediu para que os seus discípulos comprassem espadas" ela está revelando que Jesus não passa de um fantoche em suas mãos, pois o usa conforme o seu interesse. Assim que ver necessidade, ela apenas inverterá a frase e dirá: "Jesus pediu para que os seus discípulos comprassem espadas, mas ensinou a dar a outra face também." Ambas as doutrinas se perdem uma na outra.

Muitos cristãos capitalistas, equivocadamente, costumam dizer que não gostam do socialismo e que ele implicaria em pobreza global. Jesus, entretanto, louvou os pobres e criticou os ricos. Isso por si mesmo já deveria ser uma razão para terem sentimento de alegria e simpatia pelo "miserável socialismo", pois veriam virtudes globais na pobreza global. Não haveria forma melhor de salvar o mundo e ensiná-lo a humildade do que mergulhando-o na pobreza.

Há aqueles que ignoram completamente Marx por este ter sido ateu, mas que adoram Mises apesar deste ter criticado severamente Jesus e o cristianismo.

A direita cristã, inclusive os calvinistas, é repleta de cristãos humildes que dizem não merecer a graça divina, mas que defendem os próprio méritos em relação ao dinheiro que trazem em suas gordas carteiras.

Nenhuma pessoa realmente tolerante pode ter uma baixa autoestima, pois se não consegue reconhecer o valor que há em si mesma, não será capaz de reconhecer este mesmo valor no outro. Desvalorizar a si é desvalorizar o outro que é semelhante ou aquele que poderia sê-lo. É, como toda humildade, uma falsidade. O preconceito para consigo mesmo é aplicável ao outro.

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segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

O Rabino E A Adúltera

Era grande o reboliço. Todos estavam com cara de panacas diante da presença ilustre do rabino e de uma mulher acusada de adultério.

- Atire a primeira pedra aquele que nunca pecou! - provocou o rabino.

- Não diga tal bobagem, amigo! Queres, porventura, que todos aqui presentes apedrejem tão pobre mulher?! - respondi.

- Em verdade te digo que não há, além de mim, nenhum homem aqui que não seja pecador.

- Com sinceridade te informo que ninguém mais acredita em pecados hoje em dia, senhor. Certamente a apedrejarão se atenderem ao teu pedido.

- Há, entretanto, aqueles que creem em meu pai e na existência do pecado. Estes receberam a revelação da divina providência.

- Sim, de fato existem ainda aqueles que acreditam em pecado, mas como não podes me convencer de que tal coisa existe, não podes também acusar-me de tê-lo cometido. Resta-lhe dizer apenas que já feri a lei dos homens, o que não seria pecado, pois tu mesmo as quebra ao meio. O termo "pecado" possui caráter estritamente religioso e não sinto-me obrigado a denominar-me como tal. Apedreja-la-ei? Não! Meu filho é jovem demais para pecar. Confesso-lhe que ele não possui em seus punhos força suficiente para lançar uma pedra e ferir a cabeça de tão pobre mulher. Afirmo-lhe, porém, que com a ajuda de uma alavanca ele pode muito bem derrubar uma pesada rocha sobre ela e tirar-lhe a vida.

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quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Somos Todos Inocentes

Meu nome é Bianca. Nome não é algo que se toca. Então, uma boa forma de saber se você gostou de um nome é tentando lembrar-se de alguém que o tinha. Bianca, no caso, era o nome de minha mãe também. Portanto, é o nome mais bonito que alguém poderia me dar. Acho que no futuro as pessoas terão nomes provisórios, só até terem idade suficiente para que possam escolher os seus próprios nomes. Como é do homem o vício de dar nomes a tudo e os homens são provisórios, todos os nomes são no fim provisórios também. Chegará o dia em que não haverá nada para se nomear, inclusive, alguém para nomear.

Hoje eu li no horóscopo e não gostei do que li. Espero que a mentira que escreverão amanhã pareça mais convincente. Não tolero mentiras óbvias. Eu quero uma mentira que sirva para alegrar o meu dia, mas o jornal não me convenceu outra vez e não me convence há meses.

Quando se é nova em um lugar as coisas que são velhas para os outros são novas para você. Eu estava na cidade havia duas semanas quando tudo começou. Eu sou aquele tipo de pessoa que não costuma ter interesse em conhecer ninguém. É mais econômico. Na verdade, nós nascemos, morremos e nunca conhecemos realmente as pessoas. Quando geralmente me perguntam “gostaria de conhecer fulano?” eu pergunto “e você? Realmente o conhece?”.

O lado ruim de não ter idade para dirigir é que não importa o quanto você ande você sabe que poderia ter ido muito mais longe. Eu desenvolvi uma rotina que seguia todo fim da tarde. Andar de bicicleta pelos quarteirões era uma forma de olhar as casas, os bancos de madeira, as crianças, os cachorros e tudo o que eu sempre pude ver nesta vida. Em uma destes dias com os pés empurrando os pedais foi que eu conheci Alice. Ela era um pouco mais velha do que eu, alta, tinha uma beleza arrebatadora, uma postura ereta, cabelos bem cuidados e compridos, lábios carnudos, seios salientes e covinhas charmosas em um sorriso desenhado por Michelangelo ou Da Vinci. Certamente eu nunca havia visto uma garota tão bonita em minha vida e provavelmente não veria, principalmente em uma cidade pequena como aquela. Se eu fosse tão bonita quanto ela, pretendentes não me faltariam nem embaixo d’água. Ela estava usando um belo vestido colorido com um decote modesto, repleto de ilustrações. Trazia colares nos pulsos, sandálias confortáveis e uma corrente presa ao pescoço com algum símbolo que eu não soube identificar no momento o que exatamente significava. Sua bela presença, ao falar comigo, me causou certo constrangimento. Sua naturalidade e empolgação me causavam estranheza e admiração.

- Olá! Você se mudou para cá?

- Sim. Eu e meu pai estamos aqui há duas semanas.

- Nossa! Você é linda! Pequenininha. Parece um anjo com estes olhos claros e estas madeixas louras. Parece até que a gente pode te quebrar se te abraçar muito forte. – Disse ela com um sorriso contagiante.

- Você me conhece de algum lugar? – Perguntei protegendo meu braço com a mão.

- Não. É que eu moro naquela casa ali em cima e da janela eu podia te observar andando de bicicleta nesta rua algumas vezes. Pensei “esta menina é nova por aqui”.

- Hum! Eu acho que já te vi olhando daquela janela também.

- Você veio mais o seu pai. E a sua mãe?

- Ela faleceu quando eu ainda era pequena.

- Desculpe, mas você ainda é pequena, amor. –provocou ela com um sorriso respeitoso e camarada.

- Todo mundo diz isso.  Eu tenho 16 anos. Vou fazer 17. –respondi com um sorriso tímido.

- Achei que seria esta idade mesmo. –disse-me com um ar compreensivo.

Eu não sei se ela havia se acostumado a receber cantadas, mas durante todo o tempo em que conversávamos passava algum garoto tentando cortejá-la. Talvez ela estivesse apenas respeitando a minha presença, mas não respondeu nada.

- Gostaria de ir comigo e alguns amigos até a praia? Você não deve conhecer ninguém aqui ainda, né?

- Praia?

- Sim. Há uma praia perto daqui. Não são nem 30 minutos.

- Claro! Irei, sim.

Se fosse alguma outra pessoa que me convidasse, muito provavelmente eu não iria. Não sei dizer o porquê de ter aceitado no fim das contas. Minha mãe costumava dizer, pelo menos é o que meu pai diz, que não se deve falar com estranhos. Bem, naquela cidade todos me eram estranhos. De igual modo, eu era estranha para todos ali. Melhor quebrar uma regra do que deixar a regra quebrar o meu corpo. Não falar com estranhos me impossibilitaria de falar comigo mesma.

Há aquelas coisas para as quais os pais sempre dizem “quando você crescer você irá entender” e aí você cresce e continua não entendendo nada, mas fica com vergonha de perguntar de novo, pois já deveria ter aprendido.

Meu pai sempre foi um homem dócil. É alguém que encontrou a paz entre o céu e a terra. Seu rosto queimado pelo sol não é mais bronzeado que o seu coração. Só existem dois tipos de pessoas no mundo: As pessimistas e aquelas que ainda não perceberam que o pessimismo faz muito sentido. Meu pai pertencia ao segundo grupo e isso me deixava bastante contente.

Era um dia quente quando Alice apareceu em casa. Eu havia dado o meu endereço à ela no dia anterior. Ela disse que as outras pessoas estariam esperando-nos perto dali. Convidou o meu pai para acompanhar-nos, mas o mesmo recusou alegando que tinha muitas coisas para resolver.

- Então, meninas, esta é a Bianca. Ela é nova aqui.

Imediatamente duas meninas me cumprimentaram. A primeira se chamava Ana. Era de boa feição, ruiva, de baixa estatura e possuía uma pequena tatuagem no ombro. A outra se chamava Janaína. Era negra, bonita, possuía lábios carnudos e usava brincos de argola.

- E os meninos?

- Ainda não chegaram.

Assim que terminaram de falar chegaram dois rapazes em nosso encontro. Um deles cumprimentou-nos sutilmente com um abrir e fechar de olhos e beijou Alice. Eram um belo casal. Flávio era bonito, alto e pardo.

- Olá! A Alice havia me falado de você.

- Oi.

- Eu sou o Flávio. Prazer em conhecê-la.

- O que estamos esperando? –perguntou Janaína.

Logo em seguida entramos os 6 no carro e, em poucos minutos, chegamos ao lugar destinado. Realmente era um lugar lindo e, apesar de repleto de pessoas, todas pareciam no mínimo toleráveis. Fazia tempo que eu não frequentava este tipo de ambiente. Até já havia me esquecido. Todas as garotas estavam lindas de maiô, especialmente Alice. Senti um pouco de receio de expor o corpo devido à minha brancura, mas o fiz. No fim do dia, de repente, quando estávamos quase prontos para partirmos, Alice tocou no meu braço para me mostrar algo e ao tirar a mão tomou um susto.

- Nossa! Ficou marcado o teu braço! Está toda vermelha a parte onde eu segurei. Você é de fato muito delicada, como uma boneca de porcelana, meu anjo!

Ela me abraçou sorrindo como se tivesse tentando me proteger do mundo, como se tivesse carregando uma delicada e valiosa flor entre as mãos. Eu fiquei incomodada com o que foi dito por ela, mas realmente ela tinha razão. Eu sou frágil demais.

- Como vocês se conheceram? –eu perguntei.

- Nós nos conhecemos em uma comunidade. Na verdade, eu e a Janaína somos de outra cidade. Nós costumamos vir aqui para participar de reuniões com a Alice, o Flávio e o Alexandre.

- Comunidade? Reunião?

- Sim. Nós discutimos sobre política, filosofia e arte. Por exemplo, já ouviu falar de Bertrand Russell?

- Não.

- Bem, ele nos influenciou bastante, querida. –respondeu Ana.

- E ainda influencia. –“Corrigiu” Flávio.

-Nossa! Ela parece uma boneca, mesmo, Alice! –Ana.

- Eu não falei? Eu já disse isso pra ela umas mil vezes. –respondeu Alice em bom tom e com uma encantadora gargalhada.

- Muito linda!-Ana.

- Já deve ter destruído muitos corações nestas duas semanas. –brincou Aline.

Eu pensei em oferecer um pedaço de pastel de carne que eu havia comprado na praia, mas eles disseram que eram vegetarianos. Fiquei curiosa. Nunca havia conhecido um vegetariano, imagine 5!

- Tem algo a ver com a religião de vocês?

- Não. Como Nietzsche, pensamos que Deus está morto. –disse Ana.

- O mais correto é dizer que Deus é morto, pois aquilo que “está morto” pode “passar a viver”. Seria o caso de unicórnios, sereias e fadas. Estes não existem, mas podem vir a existir algum dia. Deus, entretanto, senão existe, não poderá vir a existir. Por isso, é mais absurdo falar sobre Deus do que sobre qualquer um destes outros seres. Há um conceito que não deixa-nos com muita alternativa, entende? –explicou Flávio.

- Sim. –respondi em tom baixo, mas depois de alguns segundos em silêncio perguntei- e se vocês estiverem errados?

- Bem, isso não parece ser impossível, mas estarmos enganados não é uma garantia de que estejam certos. Se Deus nunca apareceu para você em alguma madrugada e te disse qual é a vontade dele, não há porque abrir mão de certos prazeres que você realmente não sabe se ele condena. Fé não é conhecimento. Fé é fé.

Achei muito sóbrias as palavras dele e realmente pareciam fazer muito sentido. Chegando em casa, naquela noite eu não comi carne.

- Por que vocês não comem carne? -perguntei assim que cheguei à casa de Aline poucos dias depois. Ela foi surpreendida pela minha visita. Estava com uma camisola transparente, ao ponto de que dava para ver os mamilos, e trazia um cigarro na boca (eu não sabia que ela fumava) e, apesar de ter conseguido segurar, me deu vontade de tossir na hora.

- Por causa dos animais não humanos. –disse ela.

A resposta dela foi simples, mas eu entendera tudo. Suas conversas costumavam ser muito estimulantes ao ponto de ela me emprestar alguns livros para eu ler em casa. Os li a semana toda e em pouco tempo estava eu lá de novo batendo em sua porta e com uma nova lista de perguntas. Aline se encantou com o meu interesse pelas questões que ela costumava debater com o seu grupo. Estava fumando novamente, só que desta vez usava uma camiseta branca.

- Eu poderia fazer parte do grupo de debate? Como funciona?

- Bem, anjinho, nós compartilhamos. Somos liberais e comunitaristas.

- Compartilham o quê?

- Tudo. –ela respondeu balançando a cabeça e com um sorriso caçoador.

- Eu preciso te mostrar uma coisa, pois não pude te mostrar na vez em que fomos à praia.

- Não está muito tarde?

- É rapidinho. Você nem irá notar. Quando se der por conta já estará em casa novamente.

Dentro de poucos minutos estávamos lá de volta à praia. Acho que já deviam ser mais ou menos 22 hs. Ela olhou para o céu estrelado, jogou o cigarro na areia, tirou a roupa e ficou completamente nua. Seus seios eram firmes como rocha, redondos e perfeitos. Correndo pela praia em direção a um velho barco parado ali perto ela me pediu para fazer o mesmo.

- Tirar a roupa? Mas alguém pode aparecer por aqui.

- Não. Nunca aparece ninguém aqui neste horário. Eu garanto. Está muito calor.

Eu, timidamente, tirei a camisa e o sutiã. Tirei a calça e a calcinha logo em seguida. Achei engraçado. Estava me sentindo uma criança sapeca.

- Você está louca? –perguntei com um sorriso sem esconder a minha surpresa e verificando se realmente não havia ninguém por perto.

- Não. Você irá entender. Há algo escrito neste barco que eu quero que você leia.

Eu de fato acho que a entendi. A sensação de liberdade era tanta como eu nunca havia sentido antes. A luz da lua sobre os nossos corpos nus, sentindo a leve brisa, correndo de mãos dadas em um lugar que é quase sempre tumultuado e disputado.

- Sabe por que não como animais? Por que nós também somos animais. As roupas, os computadores, os relógios, os celulares e todos os assessórios que usamos é que nos fazem esquecer isso. Nus nos vemos como realmente somos.

Estas últimas palavras de Alice tiveram uma influência enorme sobre mim nos meses seguintes. Nus nos vemos como realmente somos. Nunca ouvi nada tão verdadeiro. Bela frase para se escrever em um barco. Agora minha rotina semanal não era andar de bicicleta pelos quarteirões, mas correr nua pela praia toda noite de domingo segurando a mão macia de Aline.

- Você tinha algum namorado na outra cidade? –perguntou-me enquanto olhávamos o mar sentadas na areia, uma ao lado da outra.

- Não. –respondi sem conseguir esconder certo constrangimento.

- Já namorou?

Disse que não com a cabeça.

- Por quê?

- Bem, eu sou tímida e tenho medo de receber um “não”.

- E quem diria “não” para você, querida? Você é linda! O rapaz teria que ser muito besta.

Depois de alguns segundos em silêncio ela disse:

- Às vezes vale a pena arriscar sermos os mais infelizes do mundo tentando sermos os mais felizes.

- Hum.

...

- Você e o Flávio namoram há quanto tempo?

- Dois anos, mas temos um relacionamento aberto, como Sartre e Simone.

- Entendo.

- E você não tem ciúmes?

- Não. Eu sempre fui assim.

- Ele é o seu primeiro namorado?

- Não. Eu e ele somos grandes amigos, somos como irmãos.

- Irmãos? Você faria sexo com um irmão?

- Todos somos irmãos, bobinha. Toda a humanidade.

Calei-me por um instante sem saber se concordava ou não com ela. Como toda essa humanidade desorganizada e egoísta poderia ser encarada como uma relação entre irmãos?

- Eu acho que sexo é algo sagrado e que você deve esperar pela pessoa certa.

- Existem várias pessoas certas espalhadas por aí. De vez em quando eu esbarro em algumas delas. –disse Alice com uma risada quase que infernal.

...

- Há alguns anos -continuou ela- eu perdi a virgindade com um amigo. Era a primeira vez dele também. Ele costumava ser caçoado pelos colegas na escola porque ainda era virgem e eu cheguei nele e disse “eu posso resolver isso”, e resolvi. –confessou com seriedade.

- E como foi?

- Foi estranho. Mas ele ficou satisfeito. E quando os colegas dele chegavam até a mim para perguntar se ele não era mais virgem mesmo eu respondia que ele já não era mais.

- Ele se mudou?

- Não. Ele faleceu aqui mesmo na praia. Teve cãibra enquanto estava nadando.

Era nítida a tristeza de Alice neste momento.

- Posso te contar um segredo?

- Claro! –disse com os olhos curiosos arregalados.

- Eu estou gostando de um garoto.

- Nossa! E você fala com ele?

- Não.

- Ele nunca deu em cima de você?

- Ele já tentou conversar comigo, mas aconteceu um imprevisto. Além disso, eu não sei beijar. Tenho medo de que ele descubra isso.

- Você não sabe beijar? – Perguntou com uma das sobrancelhas arqueadas, como se estivesse diante de um espécime desconhecido. –Quer que eu te ensine?

- Como?

- Quer que eu te ensine? Eu aprendi com uma amiga antes de começar a namorar.

Balancei positivamente a cabeça e ela colocou a mão em meu rosto. Eram tão macias as suas mãos que tive a sensação de que nuvens estavam se espreguiçando em meu rosto. Nunca fui tão atenta na vida. Ela me explicava passo por passo, primeiro falando e depois encostando os lábios em minha boca, introduzindo a língua dela e massageando a minha. Primeiro calmamente e depois com maior fervor. Tive medo de fazer qualquer contato visual naquele momento, mas sabia que ela era confiável. Era a minha melhor amiga. Foi a sensação mais maravilhosa que já tive até ela me deitar sobre a praia e acariciar os meus seios e a minha região pubiana enquanto me beijava deliciosamente.

- Entendeu como é?

- Sim. –respondi.

- Olha que quem te ensinou foi a melhor professora desta cidade. –disse ela colocando a roupa e dando indício de que estava na hora de voltarmos para casa.

Muitas pessoas não entendem a liberdade que pode nascer no meio de uma amizade. Se uma amizade for muito grande tocar o seio da outra é como tocar o próprio seio, beijar os lábios da outra é como beijar os próprios lábios, tocar as mãos da outra é como tocar as próprias mãos. Em pouco tempo compartilhávamos até roupas quando elas sabiam em ambas.

Na tarde seguinte seguinte...

- Me dá um cigarro? – Eu perguntei.
Aline tirou o cigarro da boca e me deu.

- Seu pai não vai gostar de saber que você está fumando.

- Meu pai não gosta de tanta coisa... Quem é que só faz aquilo que gostam? Se alguém no mundo não gostar de roupas de meninas, eu vou ter que andar por aí usando roupas de garoto?

- Há alguém nos espiando. Percebeu?

- Não. Onde? –respondi assustada enquanto cobria o meu corpo com a roupa.

- Ah! Que chato! Agora viu que a gente descobriu a espionagem. Você é tão sem graça. Será que era bonito? –questionou ironicamente e já tomada pelo efeito da bebida.

- Sem graça é você! –respondi jogando um pouco de água no seu rosto.

Depois de passarmos alguns momentos deitadas sob a areia e olhando o céu iluminado eu perguntei:

- Aline, você acredita em reencarnação?

- Não.

- Bem, se você acreditasse, eu diria que você é a reencarnação de minha mãe.

- Que bonitinha. Obrigada, linda! – respondeu e logo em seguida me abraçou.

Provavelmente eu conhecia melhor o corpo de Alice do que qualquer outra pessoa.  Seu jeito desinibido, seu andar lascivo, sua moral liberal e a cobiça dos homens da cidade faziam o seu corpo bem conhecido de todos. Ela não tinha nenhum constrangimento em ser vista nua, de andar com decotes generosos, vestidos transparentes, saias curtas ou shorts apertados. Ela usava a roupa que gostava independentemente dela cobrir o seu corpo, como farrapos que cobrem múmias por inteiro, ou de revelar o seu ventre ao mais conservador dos homens. Alice era livre de corpo e alma. Nunca houve corpo mais elogiado em toda cidade do que o dela nem coração mais desejado ou pernas mais famosas. O que posso dizer, entretanto, que é aquilo que mais passa batido, que Alice possuía a alma mais livre que houve ali. Sua verdadeira preocupação não era ter os homens sempre desmaiando diante dos seus pés. Era vender uma ideia que ninguém sabia vender melhor do que ela: o direito de não envergonhar-se do seu corpo nem negar a sua animalidade.

- O Fábio conheceu uma garota em uma festa ontem.

- Como você sabe?

- Ele me contou.

- Ele sempre faz isso?

- Sempre. E sempre me conta todos os detalhes.

- Esta história de relacionamento aberto é muito complicada, não?

- Eu o Flávio não pensamos ser donos um do outro. Somos livres e queremos que o outro seja livre. Entendeu?

- Sim.

- O exclusivismo monogâmico é uma falácia. Pode-se amar várias pessoas ao mesmo tempo. Eu até já transei com ele e outras garotas ao mesmo tempo.

- E você não sai com outros garotos?

- De vez em quando. No início eu fazia isso com mais frequência.

- Eu me sinto segura com o Flávio, sabe? Quando meus pais morreram ele foi a pessoa que mais esteve do meu lado.

- E você o ama?

- Certamente. Nós temos muita química.

- Hum.

- Se lembra do garoto que morreu afogado? O nome dele era Rafael. Bem, o Flávio era o melhor amigo dele. O Flávio sempre gostou de mim, desde pequeno. Desde a primeira vez que me viu. Não era raro eu receber bilhetinhos dele, chocolates, poesias, etc. Nós costumávamos ir à cachoeira juntos. Nadávamos os três no rio. Sempre que estava frio ele me emprestava a roupa dele, ficava lá do outro lado do rio me esperando para cobrir a minha nudez. Dizia que adorava ter o meu cheiro na roupa dele e que era como se tivesse dormido comigo. Ele sempre foi muito gentil e dizia ter se encantado com a minha forma natural de levar a vida. Eu só comecei a gostar dele com o passar do tempo. Foi assim o princípio de tudo.

- Nossa! Que lindo, Alice! E ele não ficou com ciúmes de você ter perdido a virgindade com o Rafael?

- O Flávio já não era mais virgem. Apenas eu o Rafael éramos. O Flávio, embora não tenha comentado nada, ficou bastante chocado na época. Ele teve medo de estar me perdendo. Mais tarde ele me confessou que tinha receio de que eu não fosse capaz de esquecer da pessoa com quem tive a minha primeira transa. Eu e o Flávio, entretanto, só fomos transar muito tempo depois. Minha segunda relação sexual foi com ele. Foi iniciativa minha. Ele ficou tão surpreso que ficou pálido, mais branco do que um fantasma. Eu disse que a minha primeira experiência não havia sido das melhores e ele foi muito carinhoso comigo. Estava cada vez mais elegante, maduro e inteligente. Isso me atraiu muito.

- Pode ler para mim uma das poesias que o Flávio escreveu para você, uma noite dessas?

- Claro! Amanhã poderei te trazer uma caixa que tenho em casa. Eu tenho todas as poesias e poemas do Flávio até hoje. Estão muito bem guardadas. Algumas eu sei até de cor.

- Então me conte, por favor!

- O nome desta é “Tenho um amigo que é poeta”. Foi a primeira que ele me escreveu:

“Tenho um amigo que é poeta e que não vou te apresentar
Pois com apenas alguns versos ele pode te tomar
Então não te enfureças se todo tempo eu não te dar
Eu preciso de um amigo e de alguém para amar

Se partires, eu tenho um ombro
Se ele se for, tenho teu colo pra chorar
Indo os dois só tenho a cova e ela não irá me rejeitar
Tenho um amigo que é poeta e que não vou te apresentar”

- Nossa! Que lindo!

- Sim.

- Lembra-se de outra?

- Lembro. O nome dessa é “A estrangeira”. Ele fez essa pensando em uma família que morava perto do campo de futebol.

“Ela é estranha
Muito mais o seu marido
Com seu olhar cabisbaixo
E o seu olhar entristecido
Tão estranha é a casa
E tão estranhos são seus filhos
O tamanho dos seus dedos
E o formato dos mamilos

É tão tamanha a estranheza
Que me dá até tristeza
De só conseguir ver beleza
Ao tornar-me seu amigo”

- Eu gostaria que alguém escrevesse poesias assim pra mim.

- Que tal virmos com ele da próxima vez? Você possui um corpo muito bonito. Certamente não faltará inspiração para que ele escreva.

- Tudo bem. –concordei com um sorriso.

No dia seguinte estávamos nós três na praia. Minha timidez era perceptível enquanto eu tirava a roupa na frente de um homem. Eu nunca havia feito isso até então. O sorriso contagiante de Alice, porém, me despiria até a alma.

“Por do sol”

“Todo fim de tarde
Quando o sol não mais arde
Correm nuas pela praia
Na mais discreta gandaia
E com seus cabelos ao vento
Nem percebem meus olhos atentos.

É tão fácil amá-las quando elas correm de mãos dadas
E hipnotizam-me os olhos quando tiram as sandálias
Mas só dura um minuto e não mais era como antes
Pois logo entram na água e o mar as esconde.”

- Lindo! Dissemos eu e Alice ao mesmo tempo.

- Se lembra da última que você escreveu para mim, Flávio? É bem curtinha.

- Claro, Aline! O nome dela é “Vênus”.

“Cai a estrela
Um pedido eu faço
Que não mais se realize um desejo com a queda de um astro
Pois o meu crime, o meu pecado, a minha falha
E desejar que se desprenda e caia”

- Que legal! Agora eu tenho uma poesia que foi feita pra mim e para a minha melhor amiga por um poeta de verdade! –Exclamei eufórica. –Adorei “por do sol”. Muito obrigada, Flávio e Aline!

Era enorme a tranquilidade do lugar. A companhia de Flávio e especialmente a de Alice eram as melhores que eu poderia ter ali. Por um momento quis que o meu pai estivesse ali conosco e fosse capaz de perceber toda aquela beleza, exceto a sensualidade do cigarro que transitava entre a boca de Aline e a minha. O céu avermelhado e os pássaros que voavam vagarosamente observando o sol a desaparecer lentamente no fundo do mar calmo.

- Não há nada mais lindo do que o por do sol, não acham? Só o paraíso poderia superá-lo em beleza.

- A beleza não está nas coisas. A beleza está na relação entre o objeto e o observador. O paraíso que muitos anseiam é repleto de prescrições, proibições e egoísmos. Os deuses costumam julgar as pessoas pelas religiões que elas professam e não pelo caráter que elas possuem. Se não há certos pecados no paraíso, o paraíso é um inferno com árvores.

Flávio costumava ser muito profundo. Não era incomum deixar de entender algo que ele dizia. “O paraíso é um inferno com árvores” parecia-me algo totalmente novo, embora não fosse. De qualquer maneira, a presença dele naquela noite foi muito proveitosa. Isso chegou a se repetir mais uma ou duas vezes mais tarde.

Em uma destas noites, entretanto, Alice chegou profundamente abalada. Ela havia me pedido para aguardá-la na praia mesmo. Fiquei lá esperando por ela por mais ou menos meia hora. De repente, eu vejo um vulto correndo em minha direção. Era ela, e estava com um olhar perdido, como se as estruturas do seu mundo estivesse desabando aos poucos.

- O que aconteceu?

- Um motivo para chorar.

- Qual seria ele?

- Sabe quando lhe dizem que o choro dura uma noite, mas a alegria virá pela manhã e você passa a noite inteira chorando e, quando percebe, já está anoitecendo de novo? O que fazer quando chegar a manhã e as lágrimas insistirem em cair do teu rosto? Aí você se pergunta quantas noites dura o choro e em que manhã ele haverá de findar? Diante disso você percebe que este é só mais um discurso positivista de seres desesperados e abandonados no universo!

Eu não soube o que responder. Certas coisas não possuem resposta, muito menos respostas confortadoras. Se eu não a confortei, foi porque não existia conforto e ela sabia muito bem. Tudo o que eu podia fazer era abraçá-la e deixá-la chorar sobre os meus frágeis ombros.

Ficamos caladas a maior parte do tempo. Pude oferecer para ela o meu silêncio condolente. Dormimos, sem perceber, de tanta tristeza e acordamos com o barulho das pessoas que chegavam à praia pela manhã.

- Nós dormimos a noite toda! –disse eu assustada enquanto mexia em seus ombros para acordá-la.

- Nossa! Desculpe! Eu não queria que acontecesse isso! Pode deixar que eu explico tudo para o seu pai. Ele deve estar muito preocupado.

Corri para casa como se tivesse o vento em meus pés. Meu pai realmente estava desesperado quando o encontrei. Sua cara de sono deixava transparecer que ficara acordado a noite toda me esperando. Entretanto, Aline era quem mais me preocupava. Mais tarde ela ligou para mim e disse que não poderia me encontrar na praia naquela noite.

- Mas está tudo bem com você?

- Claro, anjo!

Eu nunca havia visto Alice daquele jeito. Ela era uma pessoa de sorriso fácil, aquele tipo de pessoa que nada pode derrubar. Deveria ser algo realmente grave.

No dia seguinte eu cheguei em sua casa e pude ouvir certa gritaria assim que cheguei. Uma era a voz de Alice e a outra voz era de alguém que eu não conhecia. A voz de Aline estava bem exaltada, como eu nunca ouvi anteriormente.

- O que está acontecendo? –perguntei assim que ela me avistou e saiu pelo portão.

- É o meu irmão. Ele voltou de onde estava morando. Ele pretende ficar aqui comigo e com a minha tia.

- E vocês não se dão bem?

- Nenhum pouco.

- E o que ele fez desta vez?

Ela começou a chorar.

- O seu braço!

- Ele tentou me estuprar.

Alice chorava ao ponto de soluçar. Fiquei chocada. Nunca havia passado isso pela minha cabeça. Eu não sabia nem mesmo que Alice possuía um irmão morando em outra cidade. Provavelmente ela nunca me falou dele por não gostar nenhum pouco do irmão nem do que ele fazia com ela. Eu sempre andava com manchas pelo corpo, pois qualquer toque era o bastante para que minha pele branca ficasse avermelhada. Alice, entretanto, embora frágil, não era tão frágil quanto eu.  A agressão que ela sofreu deve ter sido muito forte.

- A sua tia sabe disso?

- Não.

- Vamos à polícia agora!

- Não! –disse ela com certo desespero. –quero que você jure que não irá contar isso para ninguém! 

- Eu não posso jurar uma coisa destas, Alice! Ele pode tentar fazer isso de novo!

- Se você contar algo para alguém, irá partir meu coração! Conto com o seu silêncio e com o seu abraço. Só estas duas coisas me bastam, tudo bem?

- Mas por quê, Alice?

- Porque, apesar de tudo, ele é meu irmão!

- Você não poderá ser feliz com uma situação destas!

- Feliz eu não posso mais ser, Bianca! Vê-lo preso, entretanto, seria um motivo maior de dor para mim do que qualquer outro. Já que estou destinada a sofrer, por favor, poupe-me da maior das dores. É tudo o que eu lhe peço! Poupe-me da dor maior, Bianca!

Os muros que sustentavam os céus do meu mundo eram os mesmos muros que sustentavam os céus do mundo de Alice. Se os muros do mundo dela ruíam, os meus muros ruíam também. Nossos céus, entretanto, não eram os céus habitados pelas divindades, eram os céus habitados pelo desespero, do rancor e do terror dos homens que aprenderam a voar.

- O Flávio precisa saber disso!

- Não! O Flávio iria matá-lo no mesmo momento que descobrisse! Basta-me um coração amargurado e um irmão bruto! Não suportaria ter uma alma mais amargurada do que esta que carrego, um irmão morto e o Flávio preso!

- Você deve ir morar comigo e com o meu pai! Estará protegida conosco!

- Obrigada, mas eu não quero deixar a minha tia lá e nem quero que ela saiba do ocorrido.

- Que tristeza a vida colocou em seu, caminho, Alice! Deixe-me tão pesada cruz te ajudar a carregar, pois ombro nenhum será capaz de carregá-la!

- Por favor, Bianca! Nunca mais vá sozinha até a minha casa! É perigoso! Sempre que quiser me encontrar, me ligue e marcamos de nos encontrar.

- Sim, eu prometo.

Por dois dias Alice não quis ir à praia. Quando nos encontramos mais tarde ela estava ainda muito triste. Eram os mais belos olhos tristes que eu já havia visto na minha vida. Era com ver a Fênix e a biblioteca de Alexandria pegarem fogo, Sansão ser morto depois de tanto trabalhar para Napoleão ou Aquiles ser ferido em seu calcanhar.

“Desencanto” –ela disse, enquanto corriam lágrimas de seus olhos.

“Desencanto
Que cala o meu canto
Que me derruba
Que seca as uvas

Desencanto
Que ri do meu pranto
Que me deixa no frio e no escuro
Que me cumprimenta com um murro

Desencanto
Que me fere e me mata
Motivo do meu espanto
Que me corta a garganta com a faca

Desencanto
Que me perfura o peito
Que me faz chorar tanto
Ao criar um problema sem jeito

Desencanto
Que me ata os pés e as mãos
Que me tira a fama de santo
E que me corrompe ao não ter solução

Desencanto
Que me destrói por inteiro
Que faz sangrar a ferida que estanco
E que me assombra de modo ligeiro

Desencanto
Que se eterniza em meu andar passageiro
Que me deixa sem canto
Que faz de mim um estrangeiro

Desencanto
Que facilmente se encaixa
Que sempre que me escondo
De algum jeito me acha

Desencanto, desencanto, desencanto...”

- E como vão as coisas com o seu irmão, Alice?

- Sabe de uma coisa, Bianca?

- Hum...

- Em certas circunstancias nós passamos a viver em dois mundos ao mesmo tempo. Um mundo real e um mundo imaginário...

...

- A vida nos obriga a fazer isso se não quisermos enlouquecer...

Pressionando os lábios movi complacentemente a cabeça.

- Eu acabei por morar em um mundo paralelo em que os valores são totalmente diferentes do nosso... - Dizia ela com longas interrupções demonstrando um grande pesar enquanto os seus olhos fugiam insistentemente dos meus.

- Entendo...

- Sempre que o Ivan chega em casa bêbado e a minha tia não está lá e eu, apesar de todos os esforços, não sou capaz de detê-lo, eu me rendo e finjo que está tudo bem e que quem está ali é o Flávio e não o Ivan. Eu finjo que cada tapa que ele me dá é, na verdade, um beijo, um abraço ou alguma outra demonstração de carinho de um mundo estranho ao nosso. Se eu não fingir isso e não conseguir me convencer por tal fantasia, eu simplesmente não serei capaz de viver, Bianca. Você me entende?

- Sim, Alice! Eu a entendo...

“Eu a entendo” era uma forma educada de dizer que, assim como ela, eu entendia o que significava não estar entendendo nada.

- O pior de tudo é que se você realmente consegue acreditar nesta fantasia, você passa a ver tudo isso com a maior naturalidade e corre o risco de não ter pena de alguém que esteja na mesma situação! Eu me vendi e perdi os meus valores, Bianca! Eu me vendi!

- Não diga isso, não diga isso... –sussurrei em seu ouvido.

Era sabido por todos que eu era a pessoa mais presente na vida de Alice. Mais presente até do que Flávio, que estava ocupado a maior parte do tempo. Nas últimas semanas, entretanto, Alice andava profundamente calada. Era difícil ser mais significativa na vida dela deste jeito. Ela estava sempre distraída e não raramente pedia para eu repetir alguma pergunta que havia feito à ela.

- Bianca...

- Sim...

- Você seria minha amiga mesmo se descobrisse que eu fiz algo muito errado?

- Seria sua amiga mesmo que tivesse que descer até as profundezas do inferno, Alice!

- Obrigada.

Depois de lançar um olhar perdido para o horizonte Aline olhou serenamente para mim, sorriu e apertou a minha mão com sua mão macia.

- Se lembra do clube de debate? Iremos ter uma reunião amanhã. Quer ir comigo?

- Claro, Aline! Com você eu vou para qualquer lugar! Me torno inimiga até da humanidade por sua causa.

Era uma manhã de sexta-feira. Aline estava linda como sempre, usava um belo vestido vermelho cumprido, que revelava a tatuagem de uma flor em seu ombro esquerdo, e salto-alto. Seus cabelos estavam encaracolados e suas unhas muito bem pintadas. Era notório, entretanto, que ela estava mais magra e eu sabia bem o motivo de sua perda repentina de peso.

Flávio estava presente, assim como Janaína, Ana e Alexandre. Lembrei-me do dia em que os conheci. Provavelmente eles haviam participado de algum debate como o de hoje naquela oportunidade.

- Então, quais livros vocês leram neste mês? –perguntou Alexandre.

- Eu li “Orlando”, “Noites Brancas” e “Capitães de Areia”. –respondeu Ana.

- Eu andei muito ocupado neste mês. Só consegui ler “Ana Karenina”. – respondeu Flávio.

- Eu li “Clube da Luta”, “Admirável Mundo Novo”, “O Hobbit” e “Eu, Robô”. –emendou Janaína.

Eu olhei para Alice e ela, apesar dos sinais corporais, estava com um sorriso calmo e sincero no rosto. Em certo momento Flávio segurou em sua mão e perguntou se ela estava se sentindo bem. Flávio e Alice não escondiam segredos um do outro. Se Alice não queria dizer a ele o que a estava incomodando, não seria ele quem iria forçá-la a dizer. Para ser sincera, Alice parecia bem melhor do que nos dias anteriores.

Foi um dia muito agradável aquele, principalmente por causa da melhora visível de Alice. Conheci músicas e escritores que nunca havia ouvido falar na minha vida. Levei para casa uma lista de livros e filmes para ler e assistir assim que tivesse oportunidade.

Nos dias que se seguiram tudo ia bem. Parecia que as coisas começariam a se consertar. Um coelho maligno, entretanto, esperava Alice e a golpearia assim que ela se deparasse com a sua toca. O mundo de Alice não guardava nenhuma maravilha para ela. Ela sentiria a dor da picada do escorpião, mas era a mim que o escorpião iria picar. Se eu sofria a dor dela, a vida daria um jeito de fazê-la sofrer a minha.

Foi por volta das 8:00 horas de uma terça-feira chuvosa que eu recebi uma ligação da tia de Alice e ela pedia para eu ir até lá urgentemente. Alice havia saído de casa e não havia voltado nem dado notícias, ela dizia. Chegando ao portão da casa de Alice pude avistar a sua tia já de início e ela me disse desesperada que a sobrinha havia fugido pela manhã, no dia anterior, após uma briga com o irmão. Não havia dado nenhuma notícia desde o sumiço e ela estava profundamente preocupada com o seu desaparecimento.

Senti uma descarga elétrica descer pelas minhas costas ao ver o irmão de Alice aparecer vagarosa e silenciosamente na porta enquanto eu conversava com a senhora Maria. O rosto feio e excessivamente magro dele não parecia nenhum pouco com a beleza encantadora da irmã. Parado, ele me encarava como se soubesse alguma coisa sobre eu saber de alguma coisa. A coragem me faltou e as minhas pernas tremeram tanto que quase não suportaram sustentar o meu corpo sobre elas. Minhas mãos ficaram geladas como se o sol houvesse se extinguido de vez e a minha palidez se acentuou até eu quase ficar transparente de tão branca. A tia de Alice, assim como o próprio Ivan, percebeu o meu mal estar. Apressei-me para sair de lá assim que me recompus, o mais rápido que poderia.

Quando dei por mim havia desmaiado, mas agora estava consciente sobre o sofá da sala. A senhora Maria me oferecia água com açúcar e perguntava se eu me sentia bem. Levantei-me e, apesar de desorientada ainda, procurei logo a porta de saída. Ivan, entretanto, saiu de perto da porta e vinha velozmente em minha direção. Gritei e corri. Ao ver a minha reação, Ivan pareceu ter ficado totalmente perturbado. "Ela sabe", ele pensou. Nunca fui muito veloz. Sempre era a última a chegar quando apostava corrida. Quando eu caminhava com algum grupo geralmente tinham que me esperar devido à minha lerdeza. O medo era a única coisa veloz em mim ao chegar ao meu coração com a velocidade e a força de uma bala. Corri até encontrar um dos quartos e tentei fechar a porta. Mas antes que eu conseguisse Ivan esbarrou violentamente nela e me derrubou no chão. Ele era de fato muito forte. Entendi como mesmo bêbado ele era capaz de bater em Alice. No meu caso, ele seria capaz de me matar mesmo se tivesse apenas um braço e uma perna. Seu braço direito rapidamente se enroscou em meu pescoço. Ele é louco! Eu estava totalmente rendida! Pude sentir o bafo que saia de sua boca e que infectava o ambiente. Era questão de segundos para que ele quebrasse o meu pescoço. Tudo o que eu ouvi foi a tia de Ivan gritando o nome dele e, em seguida, pude ver cacos voadores daquilo que parecia ter sido antes um abajur. Um destes cacos, inclusive, atingiu e cortou a minha testa, mas eu não percebi naquele momento. Ivan havia me soltado. Era a minha chance de lutar pela minha sobrevivência. Olhei para trás e pude vê-lo golpear a própria tia. Provavelmente foi ela quem o atingiu com o abajur para me salvar. Em questão de segundos ela estava no chão. Era uma cena assustadora! Entrei por uma das portas e, quando notei, estava na cozinha. Rapidamente peguei uma das facas na gaveta e me posicionei perto de uma das paredes. Ivan surgiu na porta e ficou fitando-me por alguns segundos. Seu rosto era sempre o mesmo, sem qualquer sombra de mudança. Ivan não teve nenhuma dificuldade para me desarmar, me derrubar no chão e me imobilizar. Mesmo enquanto eu me debatia ele teve facilidade para tirar a minha roupa e cobrir a minha boca. Olhei para os cantos, mas nada. O universo era indiferente. Apesar da chuva, nenhum dos trovões parecia repreender o seu ato criminoso. Nenhum vento foi forte o bastante para lançá-lo para longe do meu corpo. A temperatura fria que fazia lá fora não quis entrar na casa e congelar os seus ossos nem cogitaram as firmes paredes cair sobre a sua cabeça e esmagá-la. Em questão de minutos desejei estar morta e, na verdade, já estava.

Minha primeira vez foi com um demônio. Ele estava bêbado. Era feio, sujo, cheirava mal, me batia e, em nenhum momento, usou alguma palavra elogiosa ou de agradecimento. Nunca consegui tirar o seu cheiro fedido do meu corpo. Lavei-me mil vezes, até quase a minha pele sair do meu corpo, mas o seu cheiro se mantinha impregnado à minha alma como o Cristo preso na cruz e sem ressurreição. Tudo o que eu senti era medo e nojo. Nojo dele e de mim mesmo, por ter pertencido a ele. Eu vomitava a mim mesmo de minha boca e me avessava e retorcia viciosamente.

Minha sorte foi a chegada repentina de Flávio quando eu me encontrava nua e machucada sobre o chão frio da cozinha. Passei uma semana no hospital, mas desde aquele dia ainda me mantenho na lama.


“Céu cinza que encobre o meu dia não o pode enfeitar
Pois de cinza eu não gosto nem o posso suportar


sábado, 7 de dezembro de 2013

Lolita

Um fundamentalista pode se sentir obrigado a pensar que a mamadeira foi uma das piores invenções dos últimos séculos, pois a função de amamentar, dada por Deus exclusivamente às mulheres, passou a ser também dos homens.

A existência de gnomos e fadas me parece menos absurda do que a existência de Deus, pois se gnomos e fadas não existem, eles podem vir a existir algum dia. Deus, entretanto, como entendido por muitos, sempre foi e não pode a vir existir. Este é o seu limite. Se o valor da religião está em dar sentido à existência humana, todos os religiosos deveriam ser universalistas mesmo que o universalismo pareça improvável.

O apóstolo Paulo diz que aquele que não quiser trabalhar, deve passar fome. O que dizer sobre pessoas que sofrem de algum transtorno e são psicologicamente inaptas para o trabalho devido a algum trauma? Certamente tenho o dever de oferecer alimento a quem se recusa a trabalhar para consegui-lo, do mesmo modo que tenho o dever de pedir para um motorista desviar o carro se alguém estiver deitado no meio da rua e com preguiça de levantar e sair do seu caminho. O "cristão mediano" desrespeita o direito que o próximo possui de se esfaquear, mas não o alimenta quando o mesmo tem preguiça de usar a faca para cortar um pedaço de carne?

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