- Boa noite, senhores! Certamente a maioria de vocês já deve ter ouvido falar de mim. Eu sou a pessoa mais injustiçada da história uma vez que a culpa é sempre do diabo. Bem, primeiramente gostaria de dizer que o debate desta noite não me parece nem um pouco justo, pois estou a debater com o próprio Deus e Deus, como todos aqui sabem, é onipotente e, independente dos argumentos que sejam usados, ele possui o poder de confundir as nossas mentes e fazer parecer que venceu o debate.
- Mentiroso! Satanás, tu sabes que tu mesmo podes controlar as mentes e fazer com que tu pareças o vencedor deste debate.
- Tu és mais poderoso do que eu e podes evitar que eu faça uso de tão porca artimanha, mas que poder eu teria para impedir o teu agir?
- Chega, Satanás! Pois eu posso vencer o debate por mim mesmo e não quero que pareça que o fiz de forma trapaceira. Prossiga!
- Como eu dizia, este debate não me parece nenhum pouco justo. De qualquer maneira, gostaria de começar o discurso atacando o futuro governador do universo. Quem em sã consciência daria o governo do universo a um Deus que ofereceu o seu precioso filho por uma humanidade pecadora? Isso é um péssimo negócio! Um Deus que não sabe fazer negócios, não pode tomar conta do universo!
- Tu nunca entendes-te o amor, Satanás! Por isso que não percebes o valor da misericórdia!
Do meio da multidão que assiste o debate, um cristão devoto levanta os braços e em voz alta grita para satanás: É amor. Sabes o que é isso?
- Amor? Como o amor que você tinha pela sua esposa? Pelo que sei, você a traia com uma colega de trabalho. Não que eu veja algum problema nisso, mas isso vai contra os seus princípios cristãos, não?! - Responde o diabo enquanto vê o homem corajoso corar e emudecer.
- O que vale mais? Cristo ou a humanidade? - Pergunta o diabo para o homem que o desafiou.
- Cristo! Cristo vale infinitamente mais do que a humanidade! - Responde o homem à Satanás.
- Então é um péssimo negócio, certo? - Pergunta novamente Satanás, levantando da cadeira e tentando enxergar o cristão adúltero que se encolhe em meio aos curiosos olhares.
- Não. - Diz o homem encabulado.
- A diferença entre o valor de Cristo e o valor da humanidade se compara a quê? - Perguntou Satanás já com um ar impaciente no rosto.
- A diferença entre o valor de Cristo e o valor do homem é infinita e incalculável! Nenhuma mente limitada como a nossa seria capaz de compreender. É maior do que a diferença entre o mais precioso diamante e a mais fétida carniça sob o sol ou verme a rastejar. - Diante de tal resposta os cristãos, que são maioria ali, se colocam a aplaudir. Muitos gritam “glórias” e “aleluias”, pulam e se abraçam.
- Algum de vocês trocaria o mais precioso diamante por um pedaço de carniça a queimar sob o sol? Pode alguém que faz isso ser um bom negociante? Se Deus dá o seu valiosíssimo filho pela humanidade pecadora, é muito provável que ele dê a humanidade em troca de um palito de dente. Bem, seria uma troca menos absurda, não acham? Pois a diferença entre o valor de Cristo e o da humanidade é maior do que a diferença entre o valor da humanidade e o da bosta de um cavalo.
Ao ouvir isso o grupo que cantava glórias a Deus se silencia. O único som que se ouve é uma gargalhada. São alguns luciferianos, servos do diabo. Um deles brada “Puta que pariu! Eu sabia que você era foda, Satanás! Não é a toa que Deus teve que te expulsar do paraíso!”.
Deus olha para a direção de onde se originou estas palavras e responde:
- Calate! Não façam disso uma bagunça maior do que isso já é. Quanto à sua objeção, Satanás, eu digo que estou contente por ter feito o que fiz e que faria de novo.
- Devo lembrar a todos que no céu vocês viverão tendo um sentimento de realização total e que isso é inadmissível! - Diz Satanás olhando para a multidão. Olha para o lado em que Deus está sentado e fica como quem está esperando alguma palavra sobre o que acabou de dizer.
- Inadmissível?! Por qual motivo, Satanás? - Pergunta Deus.
- No paraíso as pessoas nunca ficam tristes, nunca choram e, ao mesmo tempo, nem todas estão nele. Se no paraíso não há nenhuma forma de tristeza, mesmo que as pessoas sejam felizes, isso quer dizer que elas serão frias em relação aos que estão sofrendo no inferno em algum outro lugar. Eu tolero que sejam felizes, mas não tolero que não chorem pelos que sofrem.
- Eu limparei toda lágrima porque quero eliminar o sofrimento. E faço isso exatamente porque os amo. – Argumenta Deus em voz alta e estendendo o braço direito para a humanidade enquanto segura um copo de água com a mão esquerda.
- Que pai que diz amar o filho o leva a se tornar insensível ao sofrimento alheio? Seria um bom pai aquele que ensina um filho a pisar no formigueiro a fim de que ele não sofra ao sentir pena das formigas? Digo, pois, que se no céu não há choro nem ranger de dentes, que ele é pior do que o inferno, pois nele não há amor! No inferno pode-se amar. Mesmo que nele estejamos porque o nosso tempo de se arrepender foi esgotado.
- Como és asquerosa, serpente do Éden! Foi exatamente por causa da sua capacidade de argumentar que eu a expulsei do meu rebanho angélico! Maldita serás quando este debate tiver terminado e eu o ter vencido!
- Que graça há na eternidade sem poder ouvir as músicas de Wagner, ler as heresias de Tolstoi e se maravilhar com as aventuras de Sherlock Holmes? Se não se saberá quem foram estes e tantos outros, que razão haverá de vivermos?
- Tolo! A beleza não está nas coisas. Eu posso muito bem com o meu poder fazê-los sentir prazer nas coisas mais simples ou absurdas possíveis. Posso tornar um homem feliz por comer a própria perna.
- Este é o problema. Ninguém quer ser feliz por comer a própria perna. Pelo menos, não antes que tu faças isso.
- Dizes isso porque eu não o fiz sentir prazer com isso. Se eu o fizer sentir prazer com isso, tu concordarás comigo.
- Já dizia eu que este debate é injusto. Pois como podemos ver estou a debater com alguém que pode fazer o que bem quiser com as nossas mentes.
- Calate! Já disse que não mais falaremos sobre isso! – Diz Deus com voz de trovão e faz todo o universo estremecer.
De repente, um pequeno grupo começa a se mover em direção ao inferno. Um representante grita:
- Chega! Isso já nos basta! O debate não está saindo como gostaríamos que saísse. Optamos por ir para o inferno mesmo.
Deus olha inconformado para aquele pequeno grupo e diz:
- Então vão! Podem ir! Mas eu não vou aceitá-los quando vocês perceberem o erro que estão cometendo ao não esperar que eu vença o debate desta noite!
Ao ver este grupo indo em direção ao inferno algumas pessoas aproveitam a deixa para acompanhá-lo. Isso acaba por deixar Deus ainda mais irritado.
Satanás prefere continuar a falar enquanto vê as almas seguirem-se rumo à perdição:
- Outra coisa que tenho a dizer, senhoras e senhores, e que é muito importante tratar, é que a eternidade do paraíso não existe ou que é absurdamente improvável.
- Como pode ser improvável? Eu soprarei cada segundo da eternidade. Não foi à toa que eu o apelidei de pai da mentira.
- Eu minto, de fato. Quase o tempo todo. Entretanto, estou procurando ser o mais honesto neste debate. Exatamente porque não preciso mentir. Mas meu desejo é tanto de mentir que eu sinto a vontade de defendeste. Para aqueles que pensam que o diabo sempre mente, eu, o diabo, digo “sim, o diabo sempre mente”.
- Deixe de papo e explique-se. Seu tagarelar muito me aborrece.
As pessoas que continuam a ouvir o discurso se aterrorizam ao ponto de que muitas comem as próprias unhas. No fundo nenhum sabe se quer ouvir ou não o que o inimigo de Deus tem ainda a dizer. É como poder ouvir a data da própria morte. Você não sabe se quer ouvir ou não. Tudo porque pode tentar evitar que a morte aconteça nesta data ou, na impossibilidade de fazer isso, sofrer de medo ao perceber que ela está chegando.
- Simples, senhores! Se o homem não suporta viver 70 ou 80 anos, ele não vai suportar viver a eternidade. Desejamos a eternidade por algumas décadas, mas desejaríamos a eternidade por toda a eternidade? Se em algum momento não a desejarmos, e Deus respeita os nossos desejos, ele nos libertará dela e, não mais existindo, não poderemos desejar existir novamente.
- Erras ao pensares isso, Satanás, pois o céu possui uma beleza tão indescritível que todos que entram nele fariam de tudo para não sair.
- Se todos os que entram nele fariam de tudo para não sair, coloque toda a humanidade no céu e poderá salvá-la totalmente, não apenas a alguns.
- Não quero forçar a entrada de ninguém nos céus. Eu procuro não forçar nada. Tu bem sabes disso, não?
- Tu forçaste a nossa entrada no mundo, pois tudo o que existe não existe depois de ter haviado algum consentimento. Eu posso dizer que eu mesmo estive nos céus e me desviei.
- O homem tem a eternidade para desejar a eternidade.
- O homem tem toda a eternidade para ter um segundo sem desejar a eternidade. E isso basta para que ele “deixe de ser eterno”.
- Eu vou fazer com que os homens gostem da eternidade e aborreçam a finitude. Eu sou Deus. Posso fazer isso.
- Que tu podes bem sabemos. E este é exatamente o problema. É ver o pai que pode livrar o filho não socorrê-lo.
- Cale-te, insolente! Vês-me fazer uso de frases de efeito? Por acaso, faço eu uso de meio tão desonesto? E tu ainda acusas-me de ter o poder de controlar as mentes.
Satanás não responde. Está com a garganta seca. Não é por acaso já que é o que mais se manifesta no debate. Toma um pouco de água no copo sobre a mesa e se dá por satisfeito. A semente já foi plantada no coração de todos os ouvintes. Agora é só esperar germinar. Deus, entretanto, desde o início passa a maior parte do tempo calado. Nem parece estar vivo. Só reclama de algo que alguém diz de vez em quando.
- Satanás... - Deus.
Pode-se ouvir neste momento o clamor da humanidade insatisfeita. Um homem diz:
- Deus, como podes dizer que eu não devo cobiçar o que é do meu próximo se mal vim ao mundo e tudo o que eu via já era dele?! Acho injusto não poder desejar o do próximo e que devo lutar pela igualdade de direitos.
Uma mulher presente diz também:
- Deus, como podes dizer que temos que ser como o Senhor, que não paga o mal com o mal, mas que nos paga os nossos pecados com o inferno?
Um padre aproveita os questionamentos anteriores e pergunta também:
- Senhor, como não queres que tenhamos outros deuses diante de ti, se tu não pareces ser suficiente?
- Esta última pergunta foi a mais ousada e irritante. Vinda ainda de um padre? Como pode? - Diz Deus.
- Desculpe-me, Senhor, mas prometeu-nos que não nos tentaria mais do que possamos suportar. Sinto dizer-lhe que não somos capazes de continuar assistindo a tal debate. Este tem sido profundamente penoso para todos. Nossas almas estão profundamente atormentadas, mais até do que se já tivesses jogado-nos no inferno. Seus desígnios, entretanto, são incomunicáveis!
- Petulante! Ainda julga ser meu sacerdote?! Como ousas representar o meu nome? Se é o inferno que tu queres, olhes para os próprios pulsos, pois estes estão livres! Quer ir, então vá!
Timidamente o sacerdote olha para alguns fiéis de sua igreja e sai juntamente com estes. Uma multidão resolve ir atrás do pequeno grupo. Juntos passam a cantar a caminho do inferno:
- Tudo o que temos é o destino e um pesadelo sobre a cabeça a pesar, se o inferno é torturante e quente, tudo o que queremos é dançar!
Quase toda a humanidade, como que em filas, se coloca a pular nas fontes abismais. Restam simplesmente Ubaldo e Monte Cristo do lado do trono divino, ambos trazem algodão em seus ouvidos. Sabem perfeitamente que ninguém é capaz de argumentar com o diabo nem desejam saber o que ele tem para dizer nesta noite ou em qualquer outra que seja. Como pretendiam, com os ouvidos cobertos nada puderam ouvir. De repente, Ubaldo vê o diabo arramando as suas malas para ir embora e cutuca Monte Cristo, que está a dormir:
- Acho que o debate acabou. Podemos tirar o algodão dos ouvidos? Eles estão coçando!
- O quê? Eu não consigo te entender!
- Tire os fones de ouvido!
- Eu não estou entendendo! Estou com algodão no ouvido, lembra? E se você ouviu o que o diabo tinha para dizer, eu não quero ouvir você também. Eu só vou tirar estes algodões dos meus ouvidos depois que estiver dentro do paraíso! Deus, acabou o debate?
Deus olha a multidão a se perder no abismo, manda um olhar de censura para Satanás e diz:
- Tudo bem! Eu não preciso de ninguém mesmo! Eu posso passar a eternidade conversando com meu filho e meu espírito. - Entra em seus iluminados palácios celestiais e desaparece.
- O que Deus disse?
- O quê?
- Deus disse alguma coisa. Você ouviu?
- Eu já pedi para você tirar o algodão dos ouvidos!
- O debate acabou mesmo? Eu estou com medo de ouvir Satanás! Ele parece que está indo embora, mas eu temo que isso seja apenas um truque dele. Eu só vou tirar o algodão quando estiver no céu!
- Era pra entrar no céu atrás dele?
- O quê? Eu já falei que não posso te ouvir porque estou com os ouvidos cobertos.
Neste momento Ubaldo pega na mão de Monte Cristo e o arrasta com pressa. Seguem atrás de Deus e entram em seus aposentos celestiais. Com medo de que o diabo apareça em algum momento e diga alguma coisa mais a eles, eles passam a eternidade com os ouvidos tapados.
- Quer mais café, Ubaldo? - Pergunta Deus.
- O quê? -Pergunta Ubaldo.
- Eu perguntei se você quer mais café?
- Não entendi.
- Ah, deixe pra lá! E você, Monte Cristo, quer mais leite?
- O quê? - Pergunta Monte Cristo.
- Eu perguntei se você quer mais leite?
-
Eu não sei o que estás a me dizer!
Vamos fazer assim, Senhor! Se eu quiser qualquer coisa, eu mesmo faço. Fiquemos, pois, assim. Tudo bem?
- Ok. - Responde Deus. Vendo, entretanto, a interrogação que se forma no rosto de Monte Cristo por não ter entendido a resposta, ele apenas balança a cabeça dando a entender que concorda com a proposta do homem a se esbanjar sobre a mesa.
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